O conceito de Pentadialética, tal como formulado por Mário Ferreira dos Santos, é uma poderosa ferramenta metodológica para análise concreta e integradora da realidade. O termo combina o grego penta (cinco) com dialektiké (arte da argumentação, ou diálogo racional), e se propõe como uma alternativa ao racionalismo abstrato e unilateral, tão comum nas tradições filosóficas ocidentais.
Resumo Conceitual da Pentadialética
Segundo Mário Ferreira, todo ente ou fenômeno pode — e deve — ser analisado sob cinco aspectos fundamentais, que visam assegurar uma compreensão concreta, integrada e não fragmentária:
1. Como Unidade
“Tudo quanto é, é uma unidade”.
A análise começa considerando o objeto ou ente como uma totalidade em si, singular e coesa, com identidade própria.
Exemplo: Uma célula nervosa enquanto ente dotado de identidade funcional e estrutural própria.
2. Como Totalidade
“Pois é parte de um todo”.
Aqui se vê o ente como um elemento constituinte de uma totalidade superior, ou seja, algo que tem função e sentido dentro de um contexto maior.
Exemplo: A célula nervosa como parte integrante da fibra nervosa.
3. Como Série
“Constitui com outros uma nova entidade formalmente distinta”.
O ente é visto como um elo em uma sequência, conjunto ou agrupamento que forma uma entidade com identidade própria.
Exemplo: A fibra nervosa da qual a célula faz parte, como componente da inervação.
4. Como Sistema
“Dentro da totalidade maior na qual funciona, segundo a lei da harmonia”.
A série é agora considerada como um sistema funcional, interconectado e regido por leis internas de harmonia e equilíbrio.
Exemplo: O sistema nervoso, onde a inervação funciona de forma sistêmica com outras funções biológicas.
5. Como Universo
“Do ângulo da universalidade que o inclui”.
Por fim, o ente é analisado como parte do universo mais amplo, seja ontológico, cultural, histórico, biológico, ou metafísico.
Exemplo: O sistema nervoso como componente do ser vivo, que por sua vez está inserido na biosfera, na humanidade ou em um ciclo cósmico-universal.
Aplicação Prática: o Ser Humano
- Unidade: indivíduo único.
- Totalidade: como membro de uma família ou grupo.
- Série: como parte de uma classe (econômica, cultural, social).
- Sistema: como componente ativo do Estado ou Nação.
- Universo: como manifestação da humanidade, da civilização, ou do Espírito.
Objetivo Filosófico da Pentadialética
A Pentadialética é, portanto, uma resposta ao abstratismo racionalista, propondo-se como dialética concreta, voltada para a filosofia prática e o exame dos fatos. Ela integra os entes à sua realidade e previne os vícios analíticos de recortar arbitrariamente aspectos da existência.
Finalidade: “Concrecionar imediatamente a análise, a fim de evitar os preconceitos que surgem de um raciocinar abstratista.”
Conexões com Outras Estruturas Filosóficas
- Aproxima-se da fenomenologia concreta, mas vai além ao sistematizar o modo de análise.
- Tem ressonâncias com a ontologia heideggeriana e a teoria dos sistemas, porém com um viés estrutural mais rigoroso.
- Dialoga com o pensamento heraclíteo (unidade na multiplicidade), platônico (harmonia e totalidade) e aristotélico (finalidade e função no todo).
A Decadialética, também desenvolvida por Mário Ferreira dos Santos, é uma ampliação da Pentadialética dentro de sua proposta de dialética concreta, e consiste na análise de um objeto, fato, ideia ou ente segundo dez aspectos fundamentais, que revelam sua complexidade e suas múltiplas conexões com a realidade.
Esse método visa evitar os reducionismos típicos da análise abstrata e formalista — como ocorre frequentemente na lógica clássica e em certas correntes da filosofia moderna — ao “concrecionar” o pensamento, ou seja, integrá-lo à totalidade viva da existência.
📘 Etimologia e Estrutura
- Deca-: do grego déka, dez.
- Dialética: do grego dialektiké, a arte do diálogo e da argumentação, que em Mário Ferreira é entendida como método para alcançar o real concreto.
Portanto, Decadialética = análise do real segundo dez aspectos simultâneos e complementares.
🔟 Os Dez Aspectos da Decadialética
(Apresentação baseada nos escritos de Mário Ferreira, especialmente na obra Lógica e Dialética e no Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais)
- Identidade – O ente é o que é. É necessário reconhecê-lo como tal.
- Diferença – O ente não é os outros. Diferencia-se de tudo que não é ele.
- Diversidade – O ente pode conter multiplicidades internas, sem deixar de ser uno.
- Alteridade – Todo ente se relaciona com outros entes; nenhum está isolado.
- Contradição – As oposições internas ou externas que o constituem e o desafiam.
- Potência – Aquilo que o ente pode vir a ser, suas virtualidades, latências.
- Ato – Aquilo que o ente é em sua realização atual.
- Finalidade – A direção para a qual tende, ou sua razão de ser (télos).
- Causalidade – O conjunto de causas que o determinaram como é.
- Totalidade – O ente enquanto parte de um todo, e também como totalidade de suas partes.
📍 Exemplo Aplicado: Um Livro
- Identidade: É um livro — um objeto cultural com conteúdo escrito.
- Diferença: Não é um jornal, nem um filme, nem uma árvore.
- Diversidade: Contém capítulos, ideias diversas, autores, influências, etc.
- Alteridade: Dialoga com leitores, autores, contextos históricos.
- Contradição: Pode conter ideias opostas em seu conteúdo ou provocar tensões no leitor.
- Potência: Pode ser interpretado de novos modos, transformar leitores, gerar debates.
- Ato: Está publicado, impresso, circulando.
- Finalidade: Informar, entreter, instruir ou influenciar.
- Causalidade: Foi escrito por alguém, em determinado tempo e lugar, com propósitos específicos.
- Totalidade: É parte de uma biblioteca, de um sistema cultural, de uma tradição literária.
🧭 Objetivo Filosófico
Mário Ferreira desejava, com a Decadialética, superar as armadilhas do raciocínio abstrato, promovendo uma abordagem viva, complexa, concreta e integradora dos fenômenos.
“O abstratismo não conhece o real, pois recorta artificialmente o ente. A decadialética busca conhecer o ser em sua totalidade viva.”
— Mário Ferreira dos Santos
🧠 Conexões e Influências
- Aristóteles: as causas (material, formal, eficiente e final) estão integradas na decadialética.
- Hegel: a contradição como motor do ser — mas Mário evita a abstração hegeliana.
- Tomás de Aquino: o ser como ato e potência, fundamento do real.
- Fenomenologia: partilha o espírito de retornar “às coisas mesmas”, mas vai além com estrutura racional clara.
🌐 Aplicações
A Decadialética pode ser aplicada a:
- Análise filosófica e teológica;
- Estudo de símbolos, mitos e narrativas;
- Diagnóstico social, político ou econômico;
- Interpretação de obras de arte, instituições, sistemas técnicos;
- Reflexão educacional, jurídica e científica.
Vamos desenvolver exemplos decadialéticos completos com cinco temas fundamentais abaixo:
- O Estado
- A linguagem
- O símbolo da cruz
- A democracia
- O algoritmo
Cada um será examinado segundo os 10 aspectos da Decadialética, conforme a metodologia de Mário Ferreira dos Santos.
1. 🏛️ O ESTADO — (Análise Decadialética)
Aspecto | Análise |
---|---|
1. Identidade | O Estado é uma forma de organização política soberana sobre um território. |
2. Diferença | Não é sociedade civil, nem governo, nem simplesmente população. |
3. Diversidade | Internamente, há instituições, poderes, órgãos, grupos sociais, classes. |
4. Alteridade | Relaciona-se com outros Estados, organizações internacionais, e com seus cidadãos. |
5. Contradição | Vive tensões entre liberdade e autoridade, entre centralização e autonomia. |
6. Potência | Pode se tornar mais justo, mais democrático ou se converter em tirania. |
7. Ato | É a realidade política presente, com leis, instituições e soberania em exercício. |
8. Finalidade | Garantir ordem, justiça, bem comum e soberania. |
9. Causalidade | Resulta de processos históricos, guerras, pactos sociais, ideias filosóficas. |
10. Totalidade | É parte da civilização, da história humana e da ordem mundial. |
2. 🗣️ A LINGUAGEM — (Análise Decadialética)
Aspecto | Análise |
---|---|
1. Identidade | A linguagem é o sistema de signos que permite a comunicação e a expressão do pensamento. |
2. Diferença | Não é apenas fala, nem pensamento, nem código isolado. |
3. Diversidade | Contém línguas, dialetos, registros, linguagens artísticas e científicas. |
4. Alteridade | Supõe outro: sem interlocutor, a linguagem perde função. |
5. Contradição | Entre significado e significante; entre dizer e ocultar; entre literal e figurado. |
6. Potência | Pode criar mundos, fundar culturas, conservar memórias. |
7. Ato | Está em uso constante, oralmente, por escrito, em códigos digitais. |
8. Finalidade | Comunicar, expressar, ordenar o mundo, criar sentido. |
9. Causalidade | Originada da necessidade de sobrevivência e de convivência social. |
10. Totalidade | É parte do humano, da cultura, da mente e da história. |
3. ✝️ O SÍMBOLO DA CRUZ — (Análise Decadialética)
Aspecto | Análise |
---|---|
1. Identidade | A cruz é um símbolo composto de dois eixos que se cruzam perpendicularmente. |
2. Diferença | Não é só objeto material, nem qualquer símbolo geométrico. |
3. Diversidade | Assume formas distintas: latina, grega, ansata, celta, gamada, etc. |
4. Alteridade | Ganha sentido na relação com culturas, religiões e experiências humanas. |
5. Contradição | É símbolo de sofrimento (crucificação) e de salvação (redenção); de morte e de vida. |
6. Potência | Pode ser ressignificada em novos contextos: arte, política, resistência. |
7. Ato | É usada em rituais, brasões, bandeiras, objetos devocionais. |
8. Finalidade | Representar sacrifício, fé, transcendência, eixo do mundo. |
9. Causalidade | Surge como instrumento de execução e é ressignificada pelo cristianismo. |
10. Totalidade | Está inserida na simbologia humana universal e nos arquétipos espirituais. |
4. 🗳️ A DEMOCRACIA — (Análise Decadialética)
Aspecto | Análise |
---|---|
1. Identidade | A democracia é o regime político baseado na soberania popular e na participação dos cidadãos. |
2. Diferença | Não é autocracia, nem aristocracia, nem mero voto formal. |
3. Diversidade | Pode ser direta, representativa, deliberativa, liberal, participativa. |
4. Alteridade | Só existe na relação entre cidadãos e instituições, entre maioria e minorias. |
5. Contradição | Entre liberdade e igualdade, entre decisão popular e técnica. |
6. Potência | Pode se expandir, se degenerar, se radicalizar, ou se aperfeiçoar. |
7. Ato | Funciona em parlamentos, eleições, mídia, instituições públicas. |
8. Finalidade | Assegurar liberdade, justiça, participação, direitos. |
9. Causalidade | Deriva da história grega, da modernidade, das lutas populares, das revoluções. |
10. Totalidade | É parte do ideal político moderno e da experiência civilizacional do Ocidente. |
5. 🧮 O ALGORITMO — (Análise Decadialética)
Aspecto | Análise |
---|---|
1. Identidade | Algoritmo é uma sequência finita de instruções bem definidas para resolver um problema. |
2. Diferença | Não é programa de computador, nem hardware, nem mente humana. |
3. Diversidade | Há algoritmos matemáticos, computacionais, heurísticos, genéticos, sociais. |
4. Alteridade | Atua sobre dados, age no ambiente digital, afeta sujeitos e sistemas. |
5. Contradição | Tende à precisão e automatismo, mas lida com incerteza e viés humano. |
6. Potência | Pode gerar inteligência artificial, prever comportamentos, automatizar decisões. |
7. Ato | Já opera em redes sociais, mercados, sistemas bancários, diagnósticos médicos. |
8. Finalidade | Resolver problemas, automatizar tarefas, simular decisões. |
9. Causalidade | Origem na lógica matemática, com Al-Khwarizmi, e desenvolvimento na era digital. |
10. Totalidade | É parte do sistema tecnocientífico contemporâneo e da nova lógica das sociedades digitais. |
Abaixo está um quadro comparativo entre a Pentadialética e a Decadialética, conforme sistematizadas por Mário Ferreira dos Santos. Ele evidencia diferenças de estrutura, finalidade, nível de complexidade e áreas de aplicação, ainda que ambas pertençam à mesma proposta metodológica da dialética concreta.
📊 Quadro Comparativo: Pentadialética × Decadialética
Aspecto | Pentadialética | Decadialética |
---|---|---|
Etimologia | Penta (cinco) + dialektiké (arte do diálogo ou argumentação) | Deca (dez) + dialektiké |
Nº de aspectos | 5 | 10 |
Natureza | Estrutural e concreta | Ontológica e lógica |
Objetivo | Analisar o ente ou fato em sua concreção, em níveis crescentes de integração. | Analisar o ente segundo dez categorias fundamentais do ser (identidade, diferença, potência, finalidade etc.) |
Foco metodológico | Busca situar o ente dentro de contextos relacionais e níveis de realidade. | Busca examinar os princípios ontológicos e lógicos que sustentam o ente. |
Aspectos considerados | 1. Unidade 2. Totalidade 3. Série 4. Sistema 5. Universo | 1. Identidade 2. Diferença 3. Diversidade 4. Alteridade 5. Contradição 6. Potência 7. Ato 8. Finalidade 9. Causalidade 10. Totalidade |
Grau de abstração | Médio – parte do concreto e vai ao complexo. | Alto – parte do ser enquanto ser e desce à análise concreta. |
Áreas de aplicação | Filosofia prática, sociologia, biologia, educação, análise de fenômenos sociais. | Ontologia, metafísica, lógica, análise de ideias, fundamentos do conhecimento. |
Origem conceitual | Inspirada em estruturas funcionais do real (como a célula no corpo, o homem na sociedade). | Inspirada nas categorias do ser e do pensar (influência aristotélica e tomista). |
Relação com o tempo/espaço | Examina o ente no tecido relacional do mundo real e suas funções contextuais. | Examina o ente em sua essência, dinâmica interna, causalidade e finalidade transcendente. |
Finalidade filosófica | Concrecionar a análise para evitar abstrações descoladas da realidade. | Aprofundar a compreensão do ser e fornecer estrutura à razão dialética. |
Exemplo típico | Um ser humano como indivíduo, parte de grupo, série em sociedade, sistema nacional, parte da humanidade. | O ser humano enquanto identidade, diferente dos demais, com potência, finalidade, causalidade etc. |
🧠 Síntese Interpretativa
Pentadialética | Decadialética |
---|---|
“O que é isso no mundo?” | “O que é isso enquanto ser?” |
Foca nas relações concretas | Foca nos fundamentos do ser |
Aplica-se melhor a fatos e fenômenos sociais e vivos | Aplica-se melhor a entes abstratos, conceituais e filosóficos |
Analisa integração com a realidade | Analisa estrutura interna e lógica do ente |
📷 Flusser e a Fotografia como Imagem Técnica
1. Ruptura epistemológica
Flusser afirma que a invenção da fotografia é uma ruptura equivalente à invenção da escrita. Assim como a escrita reorganizou o pensamento linear, abstrato e histórico (em oposição à cultura oral e mágica), a fotografia inicia uma nova era pós-histórica, dominada pelas imagens técnicas — imagens produzidas por aparelhos, não mais pela mão humana diretamente.
“A imagem técnica não é reprodução do real, mas produção de sentido via aparelho.”
2. Imagem técnica ≠ imagem tradicional
- A pintura: é simbólica, intencional, decodificável; o gesto do pintor pode ser interpretado.
- A fotografia: é automática, programada, codificada por um aparelho. Ainda que pareça “realista”, oculta sua mediação.
Enquanto a pintura é fenotexto (visível e interpretável como gesto humano), a fotografia é genotexto técnico (produto de cálculo, mesmo sob aparência natural).
3. Aparelho e programa
O que define a imagem fotográfica não é a intenção do fotógrafo, mas o programa do aparelho. O fotógrafo opera dentro de categorias pré-definidas: foco, tempo de exposição, abertura, ISO… tudo isso limita e molda o possível.
- O fotógrafo pensa que está livre, mas opera segundo um “programa fechado”;
- O aparelho tem uma espécie de intencionalidade maquínica, imposta ao ato humano.
“A máquina fotográfica é uma caixa preta que decide o que pode ser pensado e visto.”
4. Pós-história e automatismo
Com a dominância das imagens técnicas, não narramos mais o mundo com palavras, mas o vemos segundo o que os aparelhos permitem ver. Isso inaugura a pós-história: uma época em que a linearidade do tempo escrita é substituída por fluxos descontínuos de imagens e simulações.
- Vivemos a cultura do programa, onde não escrevemos mais histórias, mas as vemos em tempo real;
- A fotografia inaugura uma cultura da programação visual da realidade — o mundo como imagem calculada.
5. A crítica ao mito da objetividade
A fotografia é muitas vezes vista como uma representação fiel da realidade, mas Flusser desmonta esse mito:
- A foto não representa o real; ela representa o possível dentro do aparelho;
- O mundo da fotografia é um mundo simulado, com aparência de real, mas tecnicamente mediado.
📚 Exemplos centrais e desenvolvimentos
Conceito Flusseriano | Explicação | Exemplo atual |
---|---|---|
Imagem técnica | Produzida por aparato técnico, não pela mão humana. | Selfies com filtros de IA; imagens de satélite. |
Aparelho | Máquina com programa que define o possível e o impossível. | Smartphones que sugerem enquadramento e iluminação. |
Programação cultural | A cultura passa a ser determinada pelas condições técnicas do aparelho. | Algoritmos de recomendação visual nas redes sociais. |
Decodificação impossível | A imagem não é decifrada como linguagem direta; exige nova alfabetização crítica. | Fake news visuais ou imagens manipuladas sutilmente. |
Pós-história | Era dominada por imagens técnicas, que substituem a narrativa linear da escrita. | Cultura do feed (Instagram, TikTok), memes, stories. |
🧠 Impacto filosófico e cultural
- Para a fenomenologia da percepção: Flusser introduz o desafio da mediação técnica como estruturante da experiência;
- Para a estética e a crítica de arte: desloca o foco da intencionalidade do autor para a cibernética da imagem;
- Para a teoria da mídia: antecipa o que hoje se discute com algoritmos, IA generativa, deepfakes e hipervisualidade.
📌 Citação-chave
“O aparelho fotografa o mundo por meio do fotógrafo.”
Vamos analisar comparativamente os conceitos de fotografia e escrita sob os dois métodos propostos por Mário Ferreira dos Santos:
- 📐 Pentadialética: método estrutural de análise em 5 aspectos relacionais concretos;
- 🔍 Decadialética: método ontológico-lógico de análise em 10 aspectos fundamentais do ser.
Isso nos permitirá ver como fotografia e escrita se posicionam em relação à realidade, à cultura e ao ser.
📷📚 FOTOGRAFIA E ESCRITA — Análise Pentadialética
Aspecto | Fotografia | Escrita |
---|---|---|
1. Unidade | É uma imagem técnica única, composta de signos visuais codificados por um dispositivo. | É uma representação simbólica do pensamento através de signos gráficos. |
2. Totalidade | Integra o sistema de comunicação visual e técnico contemporâneo; parte da cultura imagética. | Faz parte do sistema simbólico da linguagem e da tradição histórico-literária. |
3. Série | Pertence à série das imagens técnicas (fotografia, cinema, vídeo, digital), mediadas por aparelhos. | Pertence à série das linguagens simbólicas (oralidade, escrita, tipografia, código digital). |
4. Sistema | Atua dentro do sistema informacional global (mídia, redes sociais, vigilância, publicidade). | Opera no sistema de produção de conhecimento (literatura, direito, ciência, história). |
5. Universo | Expressa o universo pós-histórico e imagético, moldado por dispositivos e algoritmos. | Expressa o universo histórico e racional, estruturado pela linearidade e pela tradição escrita. |
Síntese Pentadialética:
A fotografia é uma unidade técnica pertencente ao universo da visualidade programada, enquanto a escrita é uma totalidade simbólica pertencente ao universo histórico e discursivo.
🧠📸 FOTOGRAFIA E ESCRITA — Análise Decadialética
Aspecto | Fotografia | Escrita |
---|---|---|
1. Identidade | Imagem técnica produzida por um dispositivo óptico-digital. | Sistema gráfico de representação linguística. |
2. Diferença | Difere da pintura, da escrita e da imagem mental — é automatizada e programada. | Difere da fala, da imagem e da impressão direta — é codificada, linear e abstrata. |
3. Diversidade | Há fotografia analógica, digital, artística, jornalística, científica. | Existem diferentes sistemas (alfabetos, ideogramas), gêneros e registros. |
4. Alteridade | Exige um observador e está sempre situada num circuito cultural (revista, rede, museu, documento). | Supõe um leitor e um contexto de interpretação (jurídico, poético, técnico, epistolar). |
5. Contradição | Entre aparência de objetividade e estrutura técnica programada (Flusser). | Entre permanência e mudança de sentido; entre som e grafia; entre fixidez e polissemia. |
6. Potência | Pode ser manipulada, ressignificada, usada politicamente, esteticamente, ou como prova factual. | Pode conservar pensamento, constituir memória histórica, instruir, manipular ou transformar realidades. |
7. Ato | É produzida em dispositivos (celular, câmera, IA) e circula por redes digitais em tempo real. | É realizada por meio de escrita manual, tipográfica ou digital, e veiculada em livros, textos, telas. |
8. Finalidade | Registrar, narrar visualmente, emocionar, vigiar, publicitar, constituir um arquivo do visível. | Comunicar, informar, registrar, convencer, ordenar o mundo por meio do logos. |
9. Causalidade | Surge da técnica óptica-química (século XIX), desenvolve-se com a eletrônica, a digitalização e a IA. | Origina-se da linguagem oral, passa por inscrições simbólicas, e evolui com suportes tecnológicos. |
10. Totalidade | Parte da totalidade da cultura digital, da sociedade do espetáculo, da vigilância algorítmica. | Parte da totalidade da cultura letrada, da tradição racionalista, histórica e filosófica. |
Síntese Decadialética:
A fotografia é uma forma de ser técnico, híbrido e simbólico, estruturado pela mediação do dispositivo e pela lógica da imagem; a escrita é uma forma de ser simbólico, abstrato e discursivo, estruturado pela linguagem e pela gramática do tempo.
📌 Conclusão Comparativa
Critério | Fotografia | Escrita |
---|---|---|
Forma de mediação | Técnica (aparelho) | Simbólica (código linguístico) |
Temporalidade | Instantânea, fragmentária, não-linear | Linear, sequencial, histórica |
Cultura | Pós-histórica, visual, automatizada | Histórica, discursiva, racional |
Tipo de linguagem | Ícone técnico programado | Signo simbólico construído |
Condição de produção | Automatismo programado (Flusser) | Intencionalidade consciente |
Mundo construído | Mundo visível e simulado | Mundo narrado e interpretado |
Ensaio Filosófico: Da Cultura da Escrita à Cultura da Imagem Técnica – Flusser, Mário Ferreira e a Modernidade Digital
Introdução
Vivemos uma profunda transformação no modo como construímos, transmitimos e experimentamos o conhecimento. Se outrora a escrita foi o fundamento da cultura letrada — com seus monumentos em forma de livros, tratados filosóficos, romances e poemas —, hoje somos tragados por uma avalanche de imagens técnicas, de selfies a vídeos virais, de memes a lives em tempo real. Vilém Flusser e Mário Ferreira dos Santos, pensadores radicais e intempestivos, podem nos ajudar a compreender essa transição de paradigma: da cultura da escrita à cultura das imagens programadas.
1. O Mundo como Escritura
Para Mário Ferreira dos Santos, toda filosofia é antes de tudo uma gnosiologia — uma teoria do conhecimento. Em sua Filosofia Concreta, ele propõe um sistema que parte de evidências fundacionais, como o “princípio de identidade” e o “princípio de razão suficiente”, para compreender o real como uma estrutura ordenada, racional e apreensível. A linguagem escrita, para Mário, é o meio privilegiado para descrever, investigar e transmitir o ser, o logos, a verdade. A literatura, a poesia, a filosofia escrita são instrumentos de construção simbólica da realidade.
Esse mundo da escrita é o mundo do autor, da leitura lenta, do tempo reflexivo. É o mundo da liberdade criativa, onde a imaginação do leitor se expande sem limites, como em Dom Quixote, A Divina Comédia ou Grande Sertão: Veredas. Cada leitor constrói mentalmente seus próprios cenários, tons, rostos e atmosferas. A escrita permite não apenas comunicar, mas também invocar e recriar mundos — como o fez Tolkien ao inventar línguas, mitologias e continentes.
2. A Imagem Técnica como Ruptura – Flusser e a Nova Codificação
Vilém Flusser, por sua vez, percebe que, a partir da fotografia, uma nova codificação do mundo se instaura. Se a escrita representa uma linearidade conceitual, crítica e discursiva, a imagem técnica — a fotografia, e posteriormente o vídeo e o digital — inaugura um modo não-linear, simultâneo e programável de experiência. Para Flusser, a câmera não é uma ferramenta, mas um “aparelho” com um “programa”: ela determina os limites da liberdade do fotógrafo, que opera dentro de um conjunto finito de possibilidades pré-configuradas.
Assim como o fotógrafo, o influenciador digital também opera dentro dos “programas” das redes sociais. O “conteúdo” — palavra hoje esvaziada — é moldado por algoritmos, filtros e tendências. Curtidas, engajamento, tempo de retenção, monetização: esses são os novos critérios de valor e de visibilidade. A comunicação se torna cada vez mais imagética, curta, emocional, e muitas vezes tautológica.
A fotografia já não pretende representar o real, mas produzir afetos, gerar engajamento. O mundo se transforma em aparência estética, em instagramabilidade, em espetáculo. A subjetividade cede lugar à performatividade.
3. Do Quadro ao Feed: Entre Liberdade e Programação
A pintura — como símbolo do mundo da imagem tradicional — era uma expressão direta da intenção do artista, ainda inserida em um horizonte cultural interpretável. Já a fotografia e, sobretudo, o vídeo digital, resultam de aparelhos automatizados. O quadro pintado por Van Gogh comunica o sofrimento, a luz interior, o gesto do artista. Já a selfie no Instagram com filtro e legenda pré-formatada comunica… visibilidade, pertencimento, tendência.
Aqui vemos uma transição ontológica: do ser ao parecer. O mundo clássico buscava a essência (como em Platão), a modernidade buscava a razão (como em Descartes), e a pós-modernidade busca a exposição, a visibilidade.
4. Literatura Clássica versus Séries, Filmes, Animes
A literatura clássica exige do leitor uma postura ativa: tempo, silêncio, interiorização. A série ou o anime, ao contrário, entrega imagens prontas, sons, trilhas emocionais, cortes narrativos predefinidos. O espectador é conduzido. Enquanto o livro convida à liberdade criativa, o cinema restringe o universo à imaginação do diretor.
Veja-se o caso de Tolkien: seus livros descrevem em detalhes línguas élficas, mapas, genealogias, batalhas. A adaptação cinematográfica, por mais fiel que tente ser, comprime, seleciona, formata. A liberdade do leitor se converte na autoridade do cineasta. E no mundo digital, a cultura do “resumo”, do “spoiler” e do “review” já nos entrega o sentido pronto, sem esforço.
5. A Modernidade das Postagens e a Decadialética
A lógica das postagens — curtas, imagéticas, efêmeras — sugere um novo regime de verdade: o que aparece é o que importa. A verdade deixa de ser adequação ao real, e passa a ser engajamento. Curtidas são a nova moeda simbólica. Para Flusser, essa é uma nova “programação do ser”. Para Mário, seria uma alienação do pensamento concreto — uma regressão à aparência do sensível, sem crítica.
Aqui podemos aplicar uma decadialética contemporânea:
- Ser – o que é.
- Aparência – o que se mostra.
- Signo – o que representa.
- Programa – o que define os limites.
- Engajamento – o que valida socialmente.
- Algoritmo – o que regula invisivelmente.
- Performance – o que se encena.
- Arquivo – o que se acumula.
- Esquecimento – o que se dissolve.
- Vazio – o que resta.
Essa decadialética permite observar o ciclo da imagem técnica na modernidade digital: da aparição à obsolescência, da visibilidade à saturação.
Conclusão
A cultura da escrita e a cultura da imagem técnica não são apenas modos distintos de comunicação, mas modos distintos de ser. Flusser nos alerta para o perigo da automatização da experiência: tornamo-nos operadores de aparelhos, não mais pensadores. Mário Ferreira nos convida a retornar ao logos, à reflexão concreta, à essência do ser.
O desafio de nosso tempo é não abdicar do pensamento diante do brilho das telas. É buscar um equilíbrio entre a imagem e o conceito, entre a visibilidade e a profundidade, entre o efêmero e o eterno.
Referências
- FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
- FLUSSER, Vilém. Por uma Filosofia da Fotografia. São Paulo: Annablume, 2002.
- FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Filosofia Concreta. São Paulo: Logos, 1958.
- DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997.
- BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. São Paulo: Brasiliense, 1994.
- HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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