
Análise diacrônica do pensamento ocidental (e suas margens)
Das águas de Tales ao quarto Nomos da Terra: Uma genealogia do pensamento e do poder de Mileto à Moscou contemporânea
Este artigo traça uma linha evolutiva e crítica do pensamento filosófico e político desde a filosofia naturalista de Tales de Mileto até a geopolítica espiritualista de Aleksandr Dugin. Analisando a transformação das ideias sobre natureza, ser, conhecimento, política e território, o texto evidencia como sistemas de pensamento moldaram civilizações, impérios e conflitos. Ao final, propõe-se uma reflexão sobre os impactos atuais da retomada de visões tradicionalistas e metafísicas no contexto de disputas globais.
1. Introdução: O pensamento como força modeladora da história
- Justificativa do recorte: da filosofia natural ao pensamento político contemporâneo;
- Hipótese: as ideias não apenas descrevem o mundo — elas o constroem;
- Método: abordagem genealógica e interdisciplinar (filosofia, política, história).
2. Tales e os pré-socráticos: a emergência do logos sobre o mito
- Tales de Mileto: a água como arché (princípio) e a busca por explicações naturais;
- Pitágoras e a harmonia matemática do cosmos;
- Heráclito e Parmênides: conflito e permanência como fundamentos do ser;
- Impacto: nascimento da ciência e da racionalidade como forma de ordenar o mundo.
3. Platão e Aristóteles: ontologia, política e o fundamento da civilização ocidental
- Platão: mundo das ideias, justiça e a república ideal;
- Aristóteles: teleologia, ética da virtude, e política como extensão da natureza humana;
- Impacto: base da metafísica, da lógica e da filosofia política clássica.
4. Idade Média e a síntese teológica: Agostinho, Tomás e a ordem divina
- Agostinho de Hipona: tempo, memória e a cidade de Deus;
- Tomás de Aquino: integração entre fé e razão, lei natural;
- Impacto: legitimação teológica do poder, estruturação do pensamento cristão e das monarquias europeias.
5. Modernidade: ruptura, razão e Estado
- Maquiavel: o realismo político e o nascimento da política moderna;
- Hobbes, Locke e Rousseau: contrato social, soberania e liberdade;
- Kant e Hegel: razão crítica e o espírito da história;
- Marx: materialismo histórico, luta de classes e revolução;
- Nietzsche: crítica à moral, à verdade e o nascimento do niilismo;
- Impacto: formação do Estado-nação moderno, revoluções políticas, colonização e secularização.
6. Século XX: crises, totalitarismos e novas ontologias políticas
- Heidegger: o Ser, a técnica e a crise da modernidade;
- Carl Schmitt: amigo/inimigo, teologia política e o conceito de “nomos da terra”;
- Hannah Arendt: totalitarismo, banalidade do mal e espaço público;
- Foucault: poder, biopolítica e genealogia do saber;
- Impacto: justificação e crítica de regimes autoritários; reavaliação do conceito de poder; debates contemporâneos sobre governança, liberdade e vigilância.
7. Aleksandr Dugin: geopolítica, tradicionalismo e o “quarto Nomos”
- Influências: Guénon, Evola, Heidegger e Schmitt;
- A Quarta Teoria Política: além de liberalismo, comunismo e fascismo;
- Eurasianismo: crítica ao Ocidente, exaltação da Rússia como potência espiritual e civilizacional;
- Impacto: influência sobre a doutrina militar e ideológica russa (Putin), justificativa da guerra na Ucrânia, retorno do messianismo imperial.
8. Conclusão: Pensamento como território — das ideias ao império
- Revisão das linhas de continuidade e ruptura entre os pensadores;
- A ideia como fundamento da ação: filosofia moldando guerras, Estados e civilizações;
- Atualidade: o retorno das ideias metafísicas e do “sagrado político” na disputa por hegemonia global.
Referências (exemplos)
- PLATÃO. A República.
- ARISTÓTELES. Política.
- MAQUIAVEL. O Príncipe.
- HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.
- SCHMITT, Carl. O Nomos da Terra.
- DUGIN, Aleksandr. A Quarta Teoria Política.
- FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.
- ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo.
- NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral.
- MARX, Karl. O Capital.
Do Ser à Geopolítica: Um Percurso Filosófico de Tales de Mileto a Aleksandr Dugin
Resumo
Este artigo propõe uma análise filosófica e histórica da evolução do pensamento ocidental, desde os primórdios da filosofia com Tales de Mileto até as articulações geopolíticas contemporâneas de Aleksandr Dugin. Examina-se a transformação da busca pelo princípio do ser em projetos civilizacionais conflitivos, atravessando a metafísica clássica, o racionalismo moderno, o niilismo contemporâneo e as disputas ideológicas do século XXI. O objetivo é compreender de que maneira as ideias filosóficas moldaram o pensamento político, o poder e a identidade ao longo dos séculos.
Palavras-chave: Filosofia; Metafísica; Geopolítica; Tradição; Modernidade; Aleksandr Dugin.
1. Introdução
Desde seus primórdios, a filosofia ocidental buscou compreender a realidade a partir de princípios racionais e inteligíveis. A pergunta formulada por Tales de Mileto acerca da substância primordial do universo marca o início de um percurso que atravessa milênios, modificando-se na medida em que se transformam as estruturas sociais, políticas e epistêmicas. O presente artigo propõe um recorte filosófico que acompanha a evolução do pensamento do ser à ação, da razão à técnica, do sujeito à identidade coletiva, culminando na obra e influência ideológica de Aleksandr Dugin.
2. Filosofia Antiga: o nascimento da razão
A filosofia pré-socrática representa a primeira tentativa sistemática de explicar o mundo sem recorrer ao mito. Pensadores como Tales, Anaximandro e Heráclito buscaram compreender o “archê” do universo (KIRK et al., 2001). Platão e Aristóteles consolidaram uma ontologia do ser e da essência. Para Platão (2006), a realidade verdadeira encontra-se no mundo das ideias; para Aristóteles (1991), o ser manifesta-se em ato e potência.
3. Filosofia Medieval: fé e razão
Com Agostinho (2000) e Tomás de Aquino (1994), a filosofia cristã busca harmonizar razão e fé. A existência de Deus, a imortalidade da alma e a ordem divina do universo estruturam o pensamento medieval. A verdade filosófica encontra-se subordinada à Revelação.
4. Filosofia Moderna: sujeito e progresso
Com Descartes (2006), emerge o sujeito autônomo e racional: “penso, logo existo”. Kant (2003) sistematiza a razão como função organizadora da experiência. Hegel (2010) propõe a história como desdobramento dialético do Espírito. A modernidade fundamenta-se na crença no progresso, na universalidade da razão e na liberdade como destino.
5. Filosofia Contemporânea: niilismo, poder e identidade
Nietzsche (2001) denuncia a “morte de Deus” e a consequente crise de valores. Marx (2013) interpreta a história como luta de classes. Heidegger (2011) retoma a questão do Ser e critica a dominação técnica. Foucault (2008) analisa o poder como produção de subjetividades. Carl Schmitt (2007) define o político pela distinção entre amigo e inimigo, influenciando o pensamento de Dugin.
6. Aleksandr Dugin: geopolítica, tradição e a Quarta Teoria Política
Dugin (2012) propõe uma visão eurasianista e antiliberal. Combina referências a Schmitt, Heidegger, Julius Evola e pensadores eslavófilos. Em sua obra Fundamentos da Geopolítica, defende a multipolaridade e a guerra civilizacional contra o Ocidente atlantista. Sua “Quarta Teoria Política” pretende superar liberalismo, comunismo e fascismo por meio do enraizamento tradicional e do destino espiritual da Rússia.
7. Conclusão
O percurso filosófico ocidental reflete a busca constante por fundamento, sentido e poder. Da cosmologia natural à geopolítica civilizacional, a filosofia molda não apenas ideias, mas também estruturas de dominação e resistência. A obra de Dugin encarna a culminância de uma tradição que, ao criticar o universalismo moderno, propõe um retorno ao mito, ao sagrado e à guerra como destino coletivo. Em um mundo fragmentado, a filosofia permanece como espaço de confronto e reinvenção.
Referências:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 2000.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Antonio Pedro Mesquita. Lisboa: Imprensa Nacional, 1991.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DUGIN, Aleksandr. Fundamentos da Geopolítica: o futuro geopolítico da Rússia. Moscou: Arktogeia, 2012.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2008.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2011.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 2003.
KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: UNESP, 2001.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Lisboa: Edições 70, 2007.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 1994.
1. Introdução: O pensamento como força modeladora da história
Desde a Antiguidade, o pensamento humano tem operado como uma força organizadora da realidade, não apenas descrevendo o mundo, mas também produzindo formas de existência individual e coletiva. As ideias moldam estruturas sociais, justificam sistemas de poder, orientam ações e redefinem os limites do possível. Em contextos diversos — da cidade jônica de Mileto às fronteiras espirituais da Eurásia imaginada por Aleksandr Dugin —, o pensamento se faz agente histórico: constrói cosmogonias, institui ordens políticas e forja identidades civilizacionais.
Este artigo propõe uma leitura diacrônica e genealógica do pensamento ocidental e de suas margens, partindo de Tales de Mileto — tradicionalmente reconhecido como o primeiro filósofo — até Aleksandr Dugin, ideólogo contemporâneo cujas teorias influenciam as ações geopolíticas da Rússia. O arco proposto permite acompanhar a transição do mito ao logos, da natureza à política, da ontologia à geoestratégia. Ao longo do percurso, são evidenciadas as articulações entre filosofia, poder e território, entendendo que ideias não são neutras, mas sim instrumentos de construção do real.
A escolha de Dugin como ponto de chegada não é arbitrária. Sua tentativa de reencantar a política com uma metafísica tradicionalista ecoa, sob outros registros, movimentos anteriores que buscaram fundar ordens sobre princípios absolutos. Da água primordial de Tales ao “quarto Nomos da Terra”, passando por Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Maquiavel, Hobbes, Marx, Nietzsche, Heidegger e Schmitt, delineia-se um fio condutor entre pensamento e poder, entre filosofia e história, entre palavra e dominação.
Metodologicamente, adota-se uma perspectiva genealógica e comparativa, inspirada em Michel Foucault e Friedrich Nietzsche, atentando-se às condições de emergência, transformação e ressignificação dos discursos filosóficos e políticos. A ênfase está nos impactos concretos das ideias: como elas instituem práticas, fundamentam regimes e produzem subjetividades. Ao final, busca-se compreender o retorno contemporâneo de paradigmas pré-modernos em um mundo marcado pela crise da racionalidade iluminista e pela fragmentação das verdades universais.
2. Tales e os pré-socráticos: a emergência do logos sobre o mito
O nascimento da filosofia no Ocidente está profundamente ligado ao surgimento de uma nova forma de pensar: o logos, ou seja, o discurso racional, explicativo e argumentativo que se distingue das narrativas míticas fundadoras. Embora o mito tenha desempenhado papel central na organização simbólica das sociedades arcaicas — oferecendo cosmologias, genealogias divinas e códigos morais —, os chamados filósofos pré-socráticos inauguraram uma ruptura epistemológica: ao invés de recorrer aos deuses para explicar a origem e o funcionamento do mundo, buscaram princípios naturais e universais.
Tales de Mileto: a água como arché
Tales (século VI a.C.), cidadão da cidade jônica de Mileto, é frequentemente considerado o primeiro filósofo da tradição ocidental não apenas por propor um princípio unificador da realidade — a água —, mas por fazê-lo sem apelo a entidades sobrenaturais. Em sua cosmologia, tudo provém da água e a ela retorna, estabelecendo uma unidade material subjacente à diversidade sensível. Com isso, Tales inaugura não apenas a filosofia, mas também um modo de pensamento que será essencial para o nascimento da ciência.
Sua importância não reside apenas na escolha da água como elemento originário, mas na própria ideia de que o mundo é inteligível, ordenado, acessível à razão. Essa confiança na racionalidade como instrumento para compreender o cosmos é o ponto de partida da tradição filosófica ocidental.
Anaximandro e Anaxímenes: pluralidade de princípios e o apeíron
Discípulo de Tales, Anaximandro propôs o apeíron (o indefinido ou ilimitado) como princípio de todas as coisas — uma tentativa mais abstrata e radical de pensar a origem. Para ele, os elementos definidos (fogo, água, ar, terra) derivam de uma substância indeterminada e eterna, rompendo com qualquer materialismo estrito. Anaxímenes, por outro lado, identificou o ar como princípio primordial, mas atribuindo a ele propriedades dinâmicas e sutis (rarefação, condensação) que explicariam a transformação dos elementos.
Essas propostas indicam o florescimento de uma filosofia da physis (natureza), que procura compreender a mudança, o nascimento e a corrupção das coisas como processos imanentes, regidos por leis próprias.
Heráclito e Parmênides: tensão entre devir e permanência
A partir desses fundamentos, surgem duas perspectivas ontológicas que marcarão profundamente toda a metafísica posterior:
- Heráclito de Éfeso, com sua máxima “tudo flui” (panta rhei), afirma o devir como essência do real. A realidade está em constante transformação, e o conflito é o pai de todas as coisas. Seu símbolo é o fogo — móvel, instável, purificador.
- Parmênides de Eléia, por contraste, sustenta que o ser é uno, eterno e imutável. O que é, é; o que não é, não é. A mudança é ilusão dos sentidos, e apenas o pensamento pode acessar a verdade.
Entre ambos, instala-se uma dialética inaugural da filosofia: a tensão entre mobilidade e permanência, entre aparência e essência, entre o sensível e o inteligível. Essa oposição será retomada e reelaborada por Platão e Aristóteles, consolidando os alicerces da ontologia ocidental.
Impactos e heranças: a matriz racional do pensamento ocidental
O legado dos pré-socráticos é imenso. Eles não apenas criaram categorias como arché, physis, logos, nous, mas também instituíram o paradigma racional de investigação da realidade, que permitirá o nascimento da lógica, da ciência e da metafísica. Ao deslocarem o fundamento do mundo do mito para a razão, os pré-socráticos deram início a uma tradição de crítica, reflexão e sistematização que moldará o pensamento ocidental por milênios.
Mais do que isso, eles revelam que toda forma de organização do real é, em certo sentido, política: ao definir o que é princípio, o que é verdade, o que é origem, define-se também o que deve ser aceito, obedecido ou transformado. O que Tales iniciou como cosmologia será, mais adiante, convertido em filosofia política — a passagem do cosmos à pólis.
3. Platão e Aristóteles: ontologia, política e o fundamento da civilização ocidental
Se os pré-socráticos inauguraram a racionalidade filosófica ao buscar princípios naturais do cosmos, é com Platão e Aristóteles que essa racionalidade se converte em sistema filosófico totalizante, capaz de abarcar não apenas a natureza, mas também a alma humana, a política e o conhecimento. Ambos operam uma sistematização do saber que fornecerá as bases para o pensamento científico, teológico e jurídico do Ocidente, sendo assimilados e reinterpretados por cristãos, muçulmanos e judeus medievais, além de servirem como referência para o Iluminismo e até mesmo para os debates contemporâneos sobre justiça, ética e democracia.
Platão: o mundo das ideias e a ordem ideal
Discípulo de Sócrates, Platão (427–347 a.C.) herda dele a preocupação ética e política, mas amplia-a a partir de uma metafísica dualista. Em sua teoria das Ideias ou Formas, Platão postula dois níveis de realidade:
- O mundo sensível, instável, imperfeito, captado pelos sentidos;
- O mundo inteligível, eterno, imutável, acessível apenas pela razão.
A verdade reside no mundo das Ideias, sendo o sensível uma cópia imperfeita. O conhecimento verdadeiro (epistéme) não se dá pela experiência, mas pela rememoração (anamnese) da alma, que já contemplou as ideias antes de encarnar.
No campo político, essa ontologia tem implicações diretas: assim como o mundo sensível é inferior ao inteligível, a sociedade real é inferior à polis ideal, descrita em A República. Nessa obra, Platão defende que o governo deve estar nas mãos dos filósofos-reis, pois somente eles, ao compreenderem o Bem supremo, podem guiar a cidade com justiça. A estrutura social é hierárquica e funcional: os sábios governam, os guerreiros protegem, os produtores sustentam. É uma visão aristocrática da razão como fundamento da ordem política.
Aristóteles: teleologia, ética da virtude e política natural
Aluno de Platão, Aristóteles (384–322 a.C.) rejeita a separação radical entre o mundo sensível e o inteligível. Para ele, o real é composto por substâncias que reúnem matéria e forma, sendo o mundo sensível passível de conhecimento verdadeiro por meio da experiência e da lógica.
Sua filosofia é essencialmente teleológica: tudo na natureza tem uma finalidade (telos), um princípio de realização interna. O ser humano, dotado de razão, tem como fim a eudaimonia (felicidade ou florescimento), que se alcança pela prática das virtudes — hábitos que equilibram os extremos e conduzem à excelência.
Na política, Aristóteles vê o ser humano como animal político (zôon politikón), cuja realização plena só ocorre na comunidade da pólis. A cidade não é uma convenção, mas uma extensão natural da sociabilidade humana. Sua obra Política oferece uma tipologia dos regimes e busca um modelo de equilíbrio, evitando tanto a tirania quanto a demagogia.
Impactos: o paradigma clássico da razão e da ordem
Juntos, Platão e Aristóteles estabelecem os fundamentos do pensamento clássico, que permanecerá hegemônico até o advento da modernidade. Suas contribuições ultrapassam a filosofia, influenciando:
- A teologia cristã (sobretudo com Agostinho e Tomás de Aquino);
- O direito romano e moderno, ao fornecer noções de justiça, lei natural e bem comum;
- A política, ao legitimar a busca de formas racionais de organização social;
- A ciência, ao desenvolver a lógica formal e os princípios da investigação empírica.
Ambos consagram uma visão de mundo racional, ordenada e hierárquica, em que a razão desempenha papel de guia e fundamento. Essa visão será tensionada na modernidade, mas também servirá como referência para suas críticas.
Mais do que teorias filosóficas, as obras de Platão e Aristóteles moldaram imaginações políticas, justificaram regimes, inspiraram revoluções e fundamentaram projetos civilizatórios. A ideia de uma ordem racional do mundo — seja ela imanente ou transcendente — permanece como herança fundamental de ambos os pensadores.
4. Idade Média e a síntese teológica: Agostinho, Tomás e a ordem divina
Com a ascensão do cristianismo no mundo romano e sua consolidação como religião oficial do Império, a filosofia grega foi ressignificada a partir da fé cristã. Na Idade Média, o eixo do pensamento desloca-se de Atenas para Jerusalém: o foco não é mais o cosmos ou a pólis, mas Deus e a salvação da alma. Nesse contexto, as ideias de Platão e Aristóteles não são abandonadas, mas incorporadas a uma nova estrutura teológica, cuja autoridade máxima é a revelação.
Duas figuras dominam esse cenário: Agostinho de Hipona (século IV–V), que cristianiza o platonismo, e Tomás de Aquino (século XIII), que realiza a síntese entre aristotelismo e cristianismo. Ambos expressam uma tentativa de fundar racionalmente uma ordem moral e política baseada na fé, influenciando decisivamente o pensamento ocidental até a modernidade.
Agostinho de Hipona: a cidade de Deus e o tempo da eternidade
Agostinho (354–430) vive o colapso do Império Romano e a transição para a cristandade medieval. Sua filosofia é profundamente marcada pela experiência pessoal de conversão e pela leitura de Platão e dos neoplatônicos.
Em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho contrapõe dois modelos de sociabilidade:
- A Cidade dos Homens, fundada no amor próprio e na busca do poder terreno;
- A Cidade de Deus, fundada no amor a Deus e na obediência à vontade divina.
Essa oposição não corresponde exatamente a dois espaços geográficos, mas a duas formas de orientação existencial e política. A história, para Agostinho, é uma narrativa teleológica da queda, redenção e consumação do mundo — um drama espiritual que só encontra sentido na eternidade. O tempo é percebido não como ciclo (à maneira dos gregos), mas como linearidade orientada pela Providência.
Agostinho introduz também o conceito de pecado original, que marca todos os seres humanos com uma tendência à corrupção. Por isso, o poder político — mesmo sendo imperfeito — é necessário para conter o mal, funcionando como um mal menor no caminho da salvação.
Tomás de Aquino: a ordem natural e a hierarquia dos saberes
Séculos depois, com a redescoberta das obras de Aristóteles por meio dos pensadores árabes (como Averróis), Tomás de Aquino (1225–1274) constrói uma poderosa síntese entre razão e fé, filosofia e teologia. Sua obra principal, Suma Teológica, organiza todo o saber cristão segundo uma estrutura lógica aristotélica.
Para Tomás, a razão e a fé não se contradizem: ambas procedem de Deus, embora operem em níveis distintos. A razão pode chegar a verdades naturais (como a existência de Deus), mas a fé revela verdades superiores (como a Trindade), inacessíveis à razão sozinha.
No plano político, Tomás retoma a ideia de lei natural: existe uma ordem racional inscrita na criação, que orienta o comportamento humano em direção ao bem comum. O poder legítimo é aquele que colabora com essa ordem. Sua filosofia servirá de base para a doutrina da Igreja, o direito canônico e, mais tarde, o jusnaturalismo moderno.
Impactos: a sacralização do poder e a racionalização da fé
A filosofia medieval legou ao Ocidente uma concepção de mundo hierárquica, simbólica e teleológica, onde tudo tem um lugar e um fim determinado por Deus. Essa visão sustenta:
- A centralidade da Igreja como mediadora entre o humano e o divino;
- A justificação da monarquia cristã como expressão da vontade de Deus;
- A formação das universidades e o nascimento da escolástica;
- A ideia de que a política deve servir à salvação, subordinando-se à teologia.
Ao mesmo tempo, a escolástica inaugura uma tradição de debate racional sistemático, preparando o terreno para a autonomia da razão que emergirá na modernidade. Assim, mesmo subordinada à fé, a razão medieval opera como ferramenta de construção do saber — e essa tensão entre fé e razão marcará os séculos seguintes.
5. Modernidade: o nascimento do sujeito e a racionalização do poder
Com o Renascimento, as grandes navegações, a Reforma Protestante e a Revolução Científica, o Ocidente inicia um movimento de desencantamento do mundo, no qual a natureza deixa de ser vista como expressão do divino para tornar-se objeto de investigação e domínio. Paralelamente, surgem novas formas de pensar o poder, a moral e o conhecimento, fundadas na razão humana e na experiência.
Os pensadores modernos são os arquitetos dessa nova ordem. Entre eles, destacam-se Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel, cada um contribuindo para a formação do indivíduo moderno, do Estado-nação e da sociedade civil.
Maquiavel: a autonomia da política
Nicolau Maquiavel (1469–1527) inaugura a ciência política moderna ao separar a moral cristã da eficácia do poder. Em O Príncipe, ele analisa a ação política segundo a lógica do realismo: o governante deve saber agir com virtude e astúcia, mas também com crueldade, se necessário, para manter a ordem e a estabilidade.
Para Maquiavel, a política tem leis próprias, distintas da moral religiosa. Essa separação entre ética e política rompe com a tradição teológica medieval e permite pensar o poder como construção humana, sujeita a contingências históricas — uma visão que influenciará profundamente as teorias modernas do Estado.
Hobbes: o Leviatã e a segurança como fundamento do contrato
Thomas Hobbes (1588–1679), ao escrever em plena Guerra Civil Inglesa, propõe uma teoria do Estado como resposta ao caos da guerra de todos contra todos. Em Leviatã, descreve o estado de natureza como um tempo de medo e insegurança, onde a vida é “solitária, pobre, desagradável, bruta e curta”.
Para escapar desse estado, os indivíduos renunciam a parte de sua liberdade e firmam um contrato social, entregando o poder a um soberano absoluto que garanta a paz. O Estado, assim, é uma construção racional, necessário para evitar a destruição mútua — e sua legitimidade deriva do consentimento dos governados.
Locke: direitos naturais e governo limitado
John Locke (1632–1704) rejeita o absolutismo hobbesiano e defende que, mesmo no estado de natureza, os indivíduos possuem direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade. O contrato social, para Locke, cria um governo limitado, com a função de proteger esses direitos. Se o governo os violar, o povo tem o direito à resistência.
Essa teoria será a base do liberalismo político, influenciando diretamente a Revolução Gloriosa inglesa, a Revolução Americana e, mais tarde, os princípios constitucionais das democracias liberais modernas.
Rousseau: a vontade geral e a soberania popular
Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), em O Contrato Social, propõe uma visão mais radical: a verdadeira liberdade consiste em obedecer à lei que o próprio cidadão ajudou a criar. O contrato social não apenas protege os direitos, mas cria o povo como corpo político, unificado pela vontade geral.
Rousseau antecipa os ideais da Revolução Francesa, defendendo a igualdade política e a soberania popular. Sua crítica à propriedade e à desigualdade econômica o aproxima de ideologias posteriores, como o socialismo e o republicanismo radical.
Kant: autonomia moral e razão prática
Immanuel Kant (1724–1804) redefine a ética e a política com base no conceito de autonomia da razão. Em sua Crítica da Razão Prática, afirma que o sujeito moral deve agir segundo máximas universais, ou seja, princípios que possam valer para todos — o famoso imperativo categórico.
Kant também defende um projeto cosmopolita de paz perpétua, baseado em repúblicas constitucionais e na cooperação entre os povos. Para ele, a liberdade não é ausência de lei, mas auto-legislação racional: o ser humano é livre quando obedece à lei que ele mesmo reconhece como justa.
Hegel: o espírito absoluto e a realização da liberdade na história
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770–1831) interpreta toda a realidade como manifestação do Espírito (Geist), que se desenvolve dialeticamente rumo à liberdade plena. A história humana é o processo de autoconhecimento da razão, que se realiza por meio de conflitos, superações (Aufhebung) e síntese.
No plano político, Hegel vê o Estado como a encarnação da razão ética, onde o indivíduo encontra sua liberdade verdadeira não na oposição ao coletivo, mas em sua inserção na totalidade histórica e institucional. Sua visão influenciará profundamente tanto o idealismo alemão quanto o marxismo.
Impactos: o sujeito como fundamento e a política como construção racional
A modernidade instaura uma nova ontologia e uma nova política:
- O fundamento do saber e da moral não é mais Deus, mas o sujeito racional;
- O poder deixa de ser sagrado e passa a ser construído por contrato, razão ou vontade popular;
- O progresso histórico é visto como possível, racional e desejável — uma utopia secularizada;
- A liberdade é o valor supremo, mas assume formas distintas: como segurança (Hobbes), propriedade (Locke), participação (Rousseau), moralidade (Kant) ou autodeterminação histórica (Hegel).
Com isso, abre-se o caminho para as grandes ideologias políticas modernas — liberalismo, socialismo, nacionalismo — e para os conflitos que marcarão os séculos XIX e XX.
6. Século XX: ideologias, crítica à razão e geopolítica do pensamento
O século XX presencia a falência dos grandes sistemas de crença no progresso linear e na supremacia da razão ocidental. As duas guerras mundiais, o Holocausto, o totalitarismo, a bomba atômica e a descolonização abalam os fundamentos da modernidade. A filosofia reage com diversas frentes: crítica radical da razão, reconstrução dialética da história, desmantelamento da metafísica, e elaboração de novas ontologias políticas.
Nesse contexto emergem pensadores como Nietzsche, Marx, Heidegger, Schmitt, Foucault e Dugin, que interpretam, criticam ou tentam refazer os alicerces da cultura ocidental e da organização do poder.
Nietzsche: a genealogia da moral e a vontade de poder
Friedrich Nietzsche (1844–1900) é o profeta da crítica à metafísica ocidental, à moral cristã e às ilusões da razão moderna. Em obras como Genealogia da Moral e Assim Falou Zaratustra, ele denuncia a decadência da cultura ocidental, marcada por uma moral de ressentimento que nega a vida.
Nietzsche anuncia a “morte de Deus” como fato cultural: não é apenas uma crítica à religião, mas à estrutura de valores transcendentes que sustentavam o mundo antigo e medieval. Em seu lugar, propõe o ideal do além-do-homem (Übermensch), que cria novos valores a partir da vontade de poder — uma força afirmativa, criadora e trágica.
Sua influência atravessa o existencialismo, a psicanálise, a literatura e, mais tarde, a filosofia pós-estruturalista. Também será ambivalentemente apropriado por discursos ideológicos extremos, como o nazismo, embora seu pensamento seja, em essência, antitotalitário.
Marx: crítica da economia política e luta de classes
Karl Marx (1818–1883), contemporâneo de Nietzsche, oferece uma análise radical da modernidade capitalista. Para ele, o fundamento da vida social é a estrutura econômica, que determina a superestrutura ideológica (direito, religião, moral, filosofia).
Em sua Crítica da Economia Política e no Manifesto Comunista, Marx propõe que a história é movida pela luta de classes — e que o capitalismo, ao mesmo tempo que desenvolve as forças produtivas, gera desigualdades e alienação. A emancipação só será possível com a superação revolucionária do sistema capitalista e a instauração do comunismo.
O marxismo influenciará decisivamente os rumos do século XX: revoluções (Rússia, China, Cuba), movimentos operários, teorias críticas (Escola de Frankfurt) e projetos utópicos e autoritários. Seu legado é ambíguo: ao mesmo tempo em que inspira lutas por justiça social, também foi instrumentalizado em regimes de violência estatal.
Heidegger: ser, técnica e enraizamento
Martin Heidegger (1889–1976) retoma a ontologia para pensar a existência humana a partir do conceito de Dasein (“ser-aí”). Em Ser e Tempo, ele critica a tradição metafísica ocidental por ter esquecido a questão do Ser, substituindo-o por entes manipuláveis.
Heidegger enxerga a modernidade como culminância da técnica — não apenas como instrumentos, mas como um modo de revelar o mundo como estoque e recurso, no qual tudo é disponível, inclusive o ser humano. Essa crítica o aproxima de pensadores ecologistas e conservadores.
Sua adesão inicial ao nazismo, porém, mancha seu legado. Posteriormente, seu pensamento evolui para uma crítica ao globalismo técnico e à perda do enraizamento existencial — temas que serão retomados por pensadores geopolíticos como Aleksandr Dugin.
Carl Schmitt: amigo-inimigo e decisão soberana
Carl Schmitt (1888–1985) propõe uma teoria do político baseada na distinção entre amigo e inimigo, e na decisão soberana em situações de exceção. Em Teologia Política, define soberania como “aquele que decide sobre o estado de exceção”.
Crítico do liberalismo parlamentar, que considera frágil diante de crises, Schmitt defende a necessidade de uma autoridade decisiva, capaz de garantir a ordem diante do caos. Sua teoria influenciará tanto o autoritarismo (como no nazismo) quanto análises críticas da política moderna (como em Giorgio Agamben).
Schmitt também desenvolve uma geopolítica do grande espaço (Großraum), contrapondo blocos de civilização e criticando o universalismo liberal ocidental.
Foucault: poder, saber e biopolítica
Michel Foucault (1926–1984) desmonta as noções modernas de sujeito e verdade. Em obras como Vigiar e Punir e História da Sexualidade, mostra como o poder moderno não é apenas repressivo, mas produtivo: ele forma sujeitos, corpos, identidades e normas.
Foucault analisa a transição das formas soberanas de poder (baseadas na morte) para formas biopolíticas (baseadas na gestão da vida). O Estado moderno passa a gerir populações por meio da medicina, estatística, urbanismo, psicologia — produzindo o que ele chama de “regimes de verdade”.
Sua crítica ao humanismo, às instituições e à racionalidade ocidental será central para os estudos pós-coloniais, de gênero, decoloniais e para os debates contemporâneos sobre vigilância, tecnologia e controle.
Aleksandr Dugin: eurasianismo, tradição e guerra civilizacional
Aleksandr Dugin (nascido em 1962) é um pensador geopolítico russo que retoma e radicaliza elementos de todos os anteriores, combinando Schmitt, Heidegger, Evola e autores eslavófilos. Em sua obra Fundamentos da Geopolítica, Dugin propõe a construção de uma civilização eurasiática, centrada na Rússia, oposta ao “atlantismo” liberal ocidental (EUA, OTAN, UE).
Sua visão é organicista, tradicionalista e multipolar: defende que o mundo deve ser composto por blocos civilizacionais autônomos, cada um com sua própria verdade, cultura e destino. Isso implica o retorno a uma ordem sacral, hierárquica e guerreira, em oposição ao igualitarismo liberal.
Dugin tem influência ideológica em setores do governo russo e nas estratégias de projeção de poder global da Rússia contemporânea. Sua visão de mundo é antiliberal, antiluminista e antiglobalista, fundando-se em uma “quarta teoria política” que pretende superar liberalismo, comunismo e fascismo.
Impactos: fragmentação, radicalização e novas sínteses possíveis
A filosofia do século XX desconstroi os alicerces modernos e aponta para:
- A multiplicidade de racionalidades (não há uma razão única e universal);
- A centralidade do corpo, da vida e do território na política;
- O retorno do mito, da tradição e do sagrado como elementos de identidade e poder;
- A emergência de novos blocos ideológicos e civilizacionais em disputa.
Essas ideias pavimentam o caminho para um mundo contemporâneo fragmentado, multipolar, e em busca de novos fundamentos ontológicos e políticos, seja pela via da tradição, da técnica, do biopoder ou da geopolítica.
7. Conclusão: da unidade do ser à guerra civilizacional — caminhos do pensamento e do poder
O itinerário traçado, do nascimento da filosofia com Tales até as disputas ideológicas contemporâneas com Dugin, revela um drama fundamental do Ocidente: a tentativa de fundar a realidade — do cosmos à cidade, do sujeito ao Estado — com base em princípios inteligíveis, estáveis e universais.
No entanto, a própria história da filosofia mostra que nenhuma fundação permanece absoluta. Cada época desfaz as certezas da anterior: o ser se torna ideia, a ideia se torna substância, a substância se torna sujeito, o sujeito se fragmenta em forças, o sentido se dissolve em genealogias, e o mundo se reorganiza em blocos civilizacionais em disputa.
Do ser à razão, da razão ao sujeito, do sujeito ao império da técnica
A filosofia antiga buscava a ordem do cosmos; a medieval, a ordem divina; a moderna, a ordem racional do sujeito e do Estado; a contemporânea, questiona todas as ordens, revelando-as como construções históricas e disputas de poder.
A crise da modernidade levou à perda do horizonte unificador. Se para Kant a razão unificava o mundo sob leis morais e científicas, para Nietzsche, Foucault e Dugin, ela se revela uma máscara, um dispositivo de dominação, uma ideologia imperial.
Nesse processo, a filosofia torna-se também instrumento de geopolítica: o pensamento deixa de ser apenas um exercício acadêmico para se tornar arma ideológica, fundamento civilizacional e mecanismo de disputa pelo futuro.
A nova disputa: liberalismo, tradicionalismo, tecnocracia, multipolaridade
Hoje, o pensamento herdado dos grandes filósofos alimenta projetos civilizacionais distintos:
- O liberalismo ocidental, herdeiro do Iluminismo e de Kant, aposta na autonomia do indivíduo, nos direitos humanos e na governança global;
- O tradicionalismo eurasianista, alimentado por Heidegger, Schmitt e Dugin, propõe um retorno à soberania sagrada, à identidade coletiva e ao enraizamento histórico-cultural;
- A tecnocracia global, sustentada por uma racionalidade instrumental (em parte herdada de Bacon, Descartes e do cientificismo moderno), organiza o mundo segundo algoritmos, big data e sistemas de vigilância;
- Os movimentos decoloniais e populares, inspirados por Marx, Foucault e pensadores pós-estruturais, buscam desconstruir as narrativas eurocêntricas e afirmar outras epistemologias.
Filosofia como espelho e projeto
Ao longo do tempo, a filosofia não apenas refletiu o mundo, mas também contribuiu para construí-lo. Cada mudança de paradigma — do ser ao sujeito, do sujeito ao poder — corresponde a uma reconfiguração da própria realidade social, política e cultural.
O pensamento de Dugin, no final da linha, não é um ponto final, mas uma síntese violenta de forças contraditórias: tradição e geopolítica, mito e estratégia, identidade e destino. Ele encarna o retorno do pensamento como força mítica e estratégica, num mundo novamente fragmentado e em disputa.
Entre ruínas e recomeços
Vivemos entre ruínas de sistemas filosóficos e políticos que prometeram universalidade. O desafio contemporâneo talvez não seja retornar a fundamentos perdidos, mas habitar a pluralidade, compreender as lógicas de cada civilização, e repensar o papel do pensamento diante da técnica, da natureza e do outro.
O ciclo iniciado com Tales — ao perguntar “o que é o princípio de todas as coisas?” — continua, mas agora em múltiplas direções, com diferentes vozes, memórias e territórios.
A filosofia permanece viva porque, mais do que respostas, ela sustenta perguntas diante do abismo. E é nesse gesto de pensar — seja com Parmênides ou com Dugin, com Platão ou com Foucault — que o humano resiste à absorção completa pelo mundo técnico, pela guerra ou pela indiferença.
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Links externos:
Hobbes, Locke e Rousseau são três filósofos contratualistas que desenvolveram teorias sobre a origem e a legitimidade do Estado, mas com visões bastante distintas sobre a natureza humana e o contrato social. Aqui está um panorama das ideias centrais de cada um:
Thomas Hobbes (1588-1679) – O Estado como Leviatã
- Obra principal: Leviatã (1651)
- Visão da natureza humana: O ser humano é naturalmente egoísta e movido por interesses próprios, levando a um estado de guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).
- Estado de natureza: Uma condição de caos, violência e insegurança, onde “o homem é o lobo do homem” (homo homini lupus).
- Contrato social: Os indivíduos renunciam à sua liberdade natural e transferem seu poder a um soberano absoluto (o Leviatã) em troca de segurança e ordem.
- Forma de governo: Absolutismo; o poder do soberano deve ser incontestável para evitar a anarquia.
John Locke (1632-1704) – O Estado Liberal
- Obra principal: Segundo Tratado sobre o Governo (1689)
- Visão da natureza humana: O ser humano é racional e capaz de viver em sociedade, ainda que possa entrar em conflitos por interesses individuais.
- Estado de natureza: Uma condição de relativa paz e liberdade, mas com a ausência de um juiz comum para resolver disputas.
- Contrato social: Os indivíduos estabelecem um governo limitado para proteger seus direitos naturais (vida, liberdade e propriedade).
- Forma de governo: Liberalismo político; defende a separação de poderes e o direito de revolução contra governos tirânicos.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) – A Vontade Geral
- Obra principal: Do Contrato Social (1762)
- Visão da natureza humana: O ser humano nasce bom e livre, mas a sociedade o corrompe.
- Estado de natureza: Um estado pacífico e harmonioso, mas que se deteriora com o surgimento da propriedade privada e das desigualdades.
- Contrato social: Os indivíduos se associam para formar uma comunidade política baseada na vontade geral, que representa o interesse coletivo acima dos interesses individuais.
- Forma de governo: Democracia direta; a soberania pertence ao povo, que deve legislar para si mesmo.
Em resumo:
- Hobbes defende um Estado forte para evitar o caos.
- Locke defende um Estado limitado para proteger os direitos individuais.
- Rousseau defende um Estado baseado na participação coletiva e na vontade geral.
A Filosofia Política e a Escola Austríaca de Economia possuem interseções, especialmente em discussões sobre liberdade, Estado e mercado. Vamos explorar cada um separadamente e depois conectá-los.
1. Filosofia Política
A Filosofia Política estuda conceitos como justiça, poder, liberdade, autoridade, direitos e deveres, além da legitimidade do Estado. Algumas das principais correntes incluem:
- Liberalismo (Locke, Mill, Nozick): Defende liberdade individual e limitação do poder estatal.
- Republicanismo (Aristóteles, Maquiavel, Rousseau): Valoriza a participação cívica e o bem comum.
- Utilitarismo (Bentham, Mill): O melhor governo é o que maximiza a felicidade geral.
- Marxismo (Marx, Engels): O Estado é um instrumento de dominação de classe, devendo ser superado.
- Anarquismo (Bakunin, Kropotkin, Rothbard): O Estado é ilegítimo e deve ser abolido.
- Conservadorismo (Burke, Oakeshott): Valoriza a tradição e a ordem social.
A Escola Austríaca se alinha principalmente ao liberalismo clássico e ao libertarianismo.
2. Escola Austríaca de Economia
A Escola Austríaca é uma corrente econômica surgida no século XIX com Carl Menger, focada na ordem espontânea, subjetivismo e livre mercado. Seus principais pensadores incluem:
Princípios Centrais
- Subjetivismo – Valor e utilidade são subjetivos e variam de pessoa para pessoa (Menger).
- Metodologia Individualista – Explicações econômicas devem partir das ações individuais (Mises).
- Ordem Espontânea – O mercado se organiza sem necessidade de planejamento central (Hayek).
- Crítica ao intervencionismo – O Estado distorce o mercado e prejudica a economia.
- Teoria do Ciclo Econômico – Explica crises econômicas como resultado de manipulação da moeda e dos juros pelo governo e bancos centrais (Hayek e Mises).
Principais Autores e Ideias
- Carl Menger (1840-1921) – Fundador, criou a teoria do valor subjetivo.
- Ludwig von Mises (1881-1973) – Defensor do livre mercado, autor de Ação Humana.
- Friedrich Hayek (1899-1992) – Prêmio Nobel, escreveu O Caminho da Servidão, criticando o socialismo.
- Murray Rothbard (1926-1995) – Criou o anarcocapitalismo, defendendo a abolição do Estado.
3. Filosofia Política e Escola Austríaca: Conexões
A Escola Austríaca tem um impacto na Filosofia Política, especialmente no libertarianismo:
- Crítica ao Estado: Seguindo Mises e Rothbard, austríacos veem o Estado como um entrave à liberdade econômica e pessoal.
- Livre Mercado: O governo deve ser mínimo ou inexistente; o mercado resolve problemas sociais.
- Direitos Individuais: Influência do liberalismo lockeano, defendendo propriedade privada como direito fundamental.
- Anarcocapitalismo: Rothbard combinou austríacos com anarquismo, propondo que até justiça e segurança sejam privadas.
Pontos de Debate
- Papel do Estado: Hayek aceitava um governo mínimo, enquanto Rothbard o rejeitava totalmente.
- Justiça Social: Austríacos criticam políticas de redistribuição de riqueza.
- Democracia: Alguns, como Hoppe, argumentam que a monarquia pode ser mais eficiente do que a democracia em proteger a propriedade.
Conclusão
A Escola Austríaca influenciou fortemente o pensamento libertário e a defesa do livre mercado na Filosofia Política. Enquanto autores como Hayek são mais moderados, Rothbard leva as ideias ao extremo, defendendo um mundo sem Estado.
Libertarianismo: Filosofia da Liberdade
O libertarianismo é uma filosofia política que coloca a liberdade individual como o valor central e defende a redução ou eliminação do Estado. Ele se baseia na ideia de que a coerção deve ser minimizada ao máximo, seja na economia, seja na vida pessoal.
1. Princípios Fundamentais do Libertarianismo
- Soberania Individual – Cada pessoa tem direito absoluto sobre sua própria vida e corpo.
- Propriedade Privada – A propriedade é um direito fundamental e inviolável.
- Livre Mercado – A economia deve ser regulada pela concorrência voluntária, sem interferência estatal.
- Não Agressão (NAP – Non-Aggression Principle) – Nenhuma pessoa ou instituição pode iniciar violência contra outra (exceção: autodefesa).
- Estado Mínimo ou Nulo – O governo deve ter um papel mínimo ou ser completamente abolido.
2. Vertentes do Libertarianismo
a) Minarquismo (Estado Mínimo)
- Defende um Estado reduzido apenas para garantir segurança, justiça e defesa.
- Baseia-se em pensadores como John Locke, Robert Nozick e Milton Friedman.
- Exemplos de minarquismo:
- Polícia e tribunais privados são rejeitados, mas a regulação estatal é mínima.
- O governo protege contratos e direitos de propriedade.
b) Anarcocapitalismo (Ausência de Estado)
- Defende a eliminação total do governo e a privatização de todas as funções estatais.
- Inspirado por Murray Rothbard, Hans-Hermann Hoppe e David Friedman.
- Acredita que segurança, justiça e infraestrutura podem ser geridas pelo setor privado.
- Baseia-se no conceito de ordem espontânea (Hayek), onde a sociedade se organiza sem coerção estatal.
3. Influências Filosóficas e Econômicas
O libertarianismo tem raízes em várias tradições:
- Liberalismo Clássico (John Locke, Adam Smith, Frédéric Bastiat) → Direitos individuais e livre mercado.
- Escola Austríaca de Economia (Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Murray Rothbard) → Crítica ao intervencionismo estatal.
- Teoria da Escolha Pública (James Buchanan, Gordon Tullock) → Como políticos e burocratas agem por interesse próprio, e não pelo bem comum.
4. Críticas ao Libertarianismo
Apesar de sua defesa da liberdade, o libertarianismo enfrenta várias críticas:
a) Críticas Econômicas
- Desigualdade – O livre mercado pode aumentar a concentração de riqueza.
- Bens Públicos – Quem financiaria infraestrutura sem impostos?
- Monopólios e Cartéis – Sem regulação, empresas poderiam explorar consumidores.
b) Críticas Sociais
- Falta de Proteção aos Vulneráveis – Sem assistência estatal, pobres e deficientes podem ficar sem apoio.
- Segurança e Justiça – Como garantir leis e ordem sem um Estado?
c) Respostas Libertárias
- A caridade voluntária substituiria o assistencialismo estatal.
- A concorrência privada traria mais eficiência que monopólios estatais.
- Leis poderiam ser privadas e descentralizadas.
5. Conclusão: O Que o Libertarianismo Defende?
O libertarianismo busca máxima liberdade e mínima coerção, acreditando que o mercado e a sociedade podem se organizar sem um governo central forte.
Enquanto minarquistas aceitam um Estado mínimo para garantir direitos básicos, anarcocapitalistas querem eliminá-lo completamente, defendendo um sistema baseado em contratos voluntários e mercado livre.